Quantos sonhos cabem em um vagão de trem?

Todo dia ela faz tudo sempre igual. Logo cedo Maria começa sua labuta, vendendo os derivados de coco de babaçu – feitos com a força das mãos de suas companheiras de vida e profissão – dentro dos vagões de um trem. Mas essa não é uma tarefa fácil. Além das horas em pé que cansam o corpo, muitas informações se perdem entre pedidos anotados e pagamentos recebidos. Maria bem que queria usar seu celular pra fazer tudo isso, mas o brilho daquela tela cheia de letras e símbolos em idiomas estranhos machuca seus olhos e confunde sua cabeça. Ali onde o aroma do óleo de babaçu se mistura ao cheiro metálico das engrenagens que movem o trem, ela se pega imaginando como seria ter algo seu, algo que ela pudesse tocar e entender, e que realmente simplificasse sua vida.
Mas a realidade é implacável. Em um país constrangido pelos pactos de uma economia política exportadora de matérias-primas, e em que mais de 60% dos Empreendimentos de Economia Solidária (EES) possuem um faturamento mensal médio de até 5 mil reais e não fazem qualquer tipo de investimento em seus próprios negócios, como é possível imaginar que uma pequena cooperativa pode encontrar os recursos necessários para criar tecnologias próprias e superar a dependência da Big Tech?
Situada no epicentro do brutal processo de extração de minérios e da riqueza da terra no Nordeste do Brasil, a Rede Mulheres do Maranhão (RMM) emergiu de uma típica contradição brasileira: a eterna luta da maioria para escapar do abismo da pobreza e desigualdade, criado pelas mesmas forças que enriquecem a minoria. Da artéria do lucro do capital internacional, uma veia de resistência: essa é a história de como um grupo de mulheres ousaram sonhar, e enfrentaram o poder das grandes plataformas de tecnologia na busca por respostas aos seus problemas mais fundamentais.
Rede Mulheres do Maranhão: superando a dependência tecnológica
A Rede Mulheres do Maranhão é uma cooperativa constituída de 16 empreendimentos solidários que somam mais de 200 membros. Eles atuam em atividades como fabricação de doces e de mel, beneficiamento e quebra do coco babaçu e da castanha de caju, panificação, cultivo de verduras e legumes e confecção de roupas. Boa parte destes empreendimentos estão em comunidades situadas no entorno da Estrada de Ferro Carajás, uma das maiores ferrovias de transporte de carga e passageiros em operação no Brasil. Ela tem mais de 892 quilômetros de extensão e transporta mais de 120 milhões de toneladas de carga – especialmente minérios – e 350 mil passageiros por ano.
Desde sua fundação em 1982, como um projeto conjunto entre a Vale – uma multinacional brasileira e uma das maiores mineradoras do mundo – e a United States Steel Corporation para a extração das reservas de minérios da Serra dos Carajás, a construção da ferrovia é acompanhada de inúmeras violações de direitos humanos: remoção forçada de comunidades de seus territórios de origem, destruição de diversas áreas de preservação ambiental, atropelamentos, mortes e ocorrências de violência sexual.
Em vermelho, o trajeto completo da Estrada de Ferro Carajás e seus mais de 800 km de extensão. Fonte: Associação Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
De forma dialética, a viabilidade dos negócios da Rede Mulheres do Maranhão está ligada umbilicalmente à existência da ferrovia. Após um processo de renovação concluído em 2014, os vagões do trem passaram a operar com janelas fechadas, o que obrigou a Rede Mulheres do Maranhão a estruturar-se como cooperativa para ter autorização para comercializar seus produtos dentro dos vagões do trem. Surgiu então um novo desafio tecnológico: como fazer a gestão da venda de dezenas de produtos diferentes dentro de um vagão de trem que percorre milhares de quilômetros todos os dias?
Núcleo de Tecnologia do MTST: desenvolvendo tecnologia popular e soberana
Contando com um extenso histórico de desenvolvimento de tecnologias populares, o Núcleo de Tecnologia do MTST (NT-MTST) foi procurado para solucionar o desafio. O problema apresentado pela RMM era simples, mas sofisticado: desenvolver um aplicativo seguro, resiliente, confiável e acessível, que permitisse às vendedoras cooperadas fazer a gestão de entradas e saídas de produtos do estoque da cooperativa; o registro e autenticação de usuários no sistema; geração de relatórios financeiros automatizados; e a integração e sincronização dos dados gerados pela aplicação com outras ferramentas e softwares já utilizados pela cooperativa.
Bruno Drugowick, um experiente engenheiro de software e um dos responsáveis pelo projeto explicou que um dos principais desafios técnicos deste aplicativo foi garantir que ele funcionasse sem conexão à internet, já que não há pontos estáveis de conexão em nenhuma parte do trajeto do trem. “A estratégia utilizada se baseou no princípio offline-first, que garante a execução das funcionalidades do app de modo offline, permitindo a sincronização dos dados com um servidor em nuvem no momento em que há conexão com a Internet”, comenta.
Os desenvolvedores do projeto tiveram que lidar com outras restrições criativas típicas de um contexto tão específico: todo o desenvolvimento da interface do aplicativo precisou ser projetado para que o sistema fosse extremamente simples e intuitivo de usar, já que muitas das mulheres usuárias são analfabetas.
À esquerda, tela principal do aplicativo, onde é possível ver todas as funções disponíveis. À direita, tela de produtos cadastrados.
Além da complexidade técnica envolvida na criação de todas as funcionalidades exigidas pela RMM, os desenvolvedores tiveram de lidar com os dilemas da gestão do trabalho voluntário. No período de 1 ano e meio, necessário para completar todo o ciclo de desenvolvimento do aplicativo, pelo menos 10 pessoas participaram do projeto, dividindo seu tempo entre a criação do produto e outras responsabilidades pessoais e profissionais. Segundo estimativa dos desenvolvedores, o custo para desenvolver um aplicativo com todas as funcionalidades exigidas pela RMM gira em torno de R$150 mil, um valor de investimento impensável para os EES, se tivessem de contratar um serviço desse porte de uma fábrica de software convencional.
No entanto, todos esses problemas não abalaram Bruno. Tendo acompanhado a criação do aplicativo desde a sua concepção, ele relata que sua motivação para persistir no desenvolvimento deste projeto surgiu de uma necessidade profunda de “sentir que meus conhecimentos técnicos e meu trabalho podem ter um impacto positivo sobre pessoas reais”.
Mesmo contando com uma ferramenta desenvolvida sob medida às suas necessidades, não é possível dizer que o quadro de dependência tecnológica enfrentado pela Rede Mulheres do Maranhão foi completamente superado. Mesmo após a entrega do projeto, a RMM ainda precisa de profissionais de tecnologia para realizar manutenções no servidor em que o software está instalado, já que, até o momento, não há pessoas com esses conhecimentos dentro da cooperativa. Além disso, foi exigido que o aplicativo desenvolvido pelo NT-MTST se integrasse com o Google Sheets, já que esse é o software que as cooperadas da RMM já conhecem, e seria mais complexo migrar para outro sistema. Mesmo entre os voluntários do NT-MTST a dependência também pôde ser sentida, já que várias das ferramentas necessárias para desenvolver um aplicativo são criadas ou patrocinadas por Big Techs.
Sonho que se sonha junto é realidade
O Núcleo de Tecnologia do MTST não está sozinho na luta pelo desenvolvimento de tecnologias digitais populares no Brasil. Outra atriz importante é a Eita, uma cooperativa de desenvolvimento de software fundada em 2011 a partir das experiências em torno do desenvolvimento do cirandas.net, o primeiro marketplace para produtos de empreendimentos solidários no Brasil. Desde então, a cooperativa já desenvolveu diversos projetos e tecnologia com base em soluções de Software Livre. “As tecnologias seguem os princípios da Educação Popular em todas as etapas do desenvolvimento”, afirma Camilla de Godoi, designer e cooperada da Eita.
Importantes órgãos públicos também têm feito esforços para incentivar a articulação entre o mundo digital e a economia solidária. A Fundação Rosa Luxemburgo e o Laboratório DigiLabour lançaram o livro Economia Solidária Digital, que busca apresentar iniciativas concretas para a construção de um futuro sem o amplo domínio das multinacionais de tecnologia. Além disso, o fortalecimento do Programa Nacional de Apoio às Incubadoras de Cooperativas (Proninc) procura atuar na “formação e qualificação de professores e pesquisadores em temas relacionados à economia digital e ao cooperativismo de plataforma”, afirma Adriana Brandão, analista de políticas sociais do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE). Kaio Rosa, pesquisador da UFMG, ressalta que as incubadoras têm um histórico consistente de apoio aos empreendimentos solidários, “inclusive em momentos de esvaziamento da agenda pública sobre o tema, durante os governos Temer e Bolsonaro”, dois ex-presidentes brasileiros ligados ao conservadorismo de direita.
Ressignificando saberes acumulados nos mais de 40 anos de tradição da Economia Solidária no Brasil, os EES vem buscando maneiras de afirmar seus valores e assegurar sua existência neste novo cenário de digitalização dos aspectos mais íntimos da vida. Distanciando-se de soluções prontas, movimentos sociais, universidades, incubadoras e governos estão descobrindo que o caminho para o desenvolvimento de tecnologias soberanas em um país dependente é longo e árduo, mas possível. Pouco a pouco, despertas das conveniências que mais prendem que libertam, as pessoas sonham. Sonha-se de Norte a Sul do país, nos becos e nas esquinas, no coração das cidades, no campo, na favela e até dentro dos vagões de um trem.
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